quarta-feira, 25 de novembro de 2015

AQUILO QUE VIVI - Capítulo CINCO

AQUILO QUE VIVI
Capítulo cinco

Acordei ouvindo o pequeno Felipe brincando com um dos seus muitos carrinhos no quintal e fazendo aqueles barulhinhos de criança do tipo "uóóóm" "vrum-vrum".
Levantei meio zonza, sem lembrar exatamente onde estava. Abri os olhos aos poucos, olhei para aquele quarto limpinho. Pintado com cores claras. Abri a janela e dava para um jardim pequeno muito florido. Muito bem cuidado. E demorei para entender se era sonho, cheguei até a pensei que eu tinha morrido e que aquilo era o céu. Levantei e abri "meia" porta.
- Você acredita, menina, que o senhor que cuida do meu jardim chama Flores. Isso mesmo o nome dele é Alberto Flores. Nome perfeito pra um jardineiro, não é? Dormiu bem?
- Ah sim. Dormi ótima. Respondi meio atordoada diante da mulher que falava comigo. Dona Silvana.
O pequeno Felipe era uma criança muito simpática. Toda criança é feliz, animada, brincalhona, ou pelo menos deveria ser. Ele era bastante. Eu não fui muito. Sempre fui retraída, ou poderia dizer reprimida.
Meu pai sempre deixou bem claro que menino podia falar, brincar, gritar, brigar... mas menina não.
- Mulher que presta deve ficar calada. Cuidar da casa, do marido, dos filhos e dos irmãos. Mulher que fala muito, que se intromete na conversa dos homens, que vive rindo e brincando não presta!
Meu pai dizia isso, meu avô dizia isso. Eles aprenderam com meu bisavô e assim seguíamos os ensinamentos. Às mulheres cabia concordar e obedecer. Caladas. Assim aprendi com minha mãe e ela com minha avó e essa com minha bisavó.
- Chocolate quente ou café?
Não ouvi.
- Chocolate quente ou café?
Ouvi, mas não entendi.
- Vamos pra cozinha. Lá tem um monte coisas gostosas. Eu gosto de bolo. E você? Agora ela Felipe que perguntava.
- Lorena, você gosta mais de chocolate quente ou café. Perguntou novamente Dona Silvana com toda paciência.
- Ah desculpe. Eu gosto de café.
Fomos pra cozinha. Eu fui levada pelas mãos do menino encantador e bonzinho.

Na cozinha sobre a mesa havia muita coisa pra comer. Bolos, bolachas, pães, sucos, leite, margarina, geleias. 
Dona Silvana colocou uma xícara de café com leite pra mim e pediu que eu comesse o que quisesse e mais gostasse. Eu gostava de tudo, menos de café com leite, mas como ela já havia colocado eu bebi sem reclamar. Como reclamar desse banquete? Comi pão com manteiga. Felipe insistiu que eu provasse o bolo de chocolate. Provei, amei. Dona Silvana me ofereceu mais café. Tive vergonha de aceitar. Ela colocou o café na xícara e dessa perguntou:
- Leite?
- Eu posso provar seu café preto?
- Claro, querida. Ah, desculpe, aquela hora coloquei leite sem nem mesmo perguntar se você gosta...
- Estava ótimo. Respondi, tentando ser convincente.
- Lorena, eu imagino que você tenha passado por coisas difíceis na sua vida, mas quero que você fique à vontade e por favor, você precisa aprender a falar o que gosta e o que não gosta. O que quer e o que não quer. Se não, menina, você vai sofrer muito.
Não tive palavras. E nada disse.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

AQUILO QUE VIVI - Capítulo QUATRO

AQUILO QUE VIVI
Capítulo Quatro
Quando saí do banho, que deve ter durado uns dez ou quinze minutos e abri a porta do banheiro. Silvana estava lá com o seu filhinho Felipe de cinco anos me olhando. Ele era lindo. Cabelos castanhos claros encaracolados. Olhos castanhos brilhantes. E usava pijamas listrados. Lindo. Lindo demais.
- Ele acordou e quis te conhecer.
- Oi eu sou Felipe e você?
- Meu nome é Lorena. Você é lindo!
- Você também é linda.
- Mulher você é linda mesmo! E assim limpinha está bem melhor, mas eu trouxe aqui uma calça de moleton e uma camiseta pra você.
Ela falou mais baixinho para que o menino não ouvisse.
- Tem também uma calcinha nova aqui. Espero que você não se importe.
Ela olhou para o banheiro.
- E onde estão suas roupas velhas?
- Eu coloquei.
- Ah não acredito que você tomou banho e colocou suas roupas sujas por baixo do roupão?
E começou a rir.
- Desculpe, eu não sabia...
- Não se preocupe Lorena. Com o tempo você aprenderá tudo. Só que agora você terá que tomar um banho rápido de novo antes de colocar as roupas que eu trouxe.
- Ai que vergonha. Desculpa.
- Que nada. Fique tranquila. Tudo vai ficar bem.
- E seu marido? Ele entendeu?
Ela falou novamente bem baixinho.
- Meu amor, aqui quem manda sou eu. Ele obedece e pronto.
E riu ainda mais.
- Muito bem, mocinho, você já conheceu a amiga da mamãe e agora vai dormir bem bonitinho.
- Tá bom, mamãe. Eu estou com sono. Tchau Lorena. Amanhã eu te mostro meus brinquedos e a gente joga vídeo-game. Tchau.
Eles foram pro quarto e eu fiz o que a Silvana disse. Tomei um banho rápido e coloquei as roupas. Tudo tão cheiroso. Macio. Um sonho.
Silvana voltou e me levou até o quarto que era ao lado do banheiro. Era lindo.
- É um quarto de empregada. Simples, mas confortável. Seja bem vinda. Você quer comer? Tenho uma sopinha deliciosa.
- Não. Muito obrigado. O que comi antes e aquele docinho que você me deu já foi bom demais.
- Tem certeza?
- Sim, estou muito bem. Você é um anjo.
Ela saiu. E eu, mais uma vez, chorei. Olhei a foto da família. Fiz uma oração e pela primeira vez em muito tempo dormi tranquilamente naquela cama macia, cheirosa. A melhor cama que eu já tinha visto na vida. Na verdade nem em sonhos tinha visto um quarto daqueles.
Sonhei que estava num lugar lindo, cheio de árvores. Rios. Pássaros. E minha mãe estava comigo.

AQUILO QUE VIVI - Capítulo TRÊS

AQUILO QUE VIVI
Capítulo Três
Entrei no carro envergonhada por vários motivos. Por estar suja, mal cheirosa e, também por não ter perguntado nem ao menos o nome daquela mulher linda e desconhecida.
- Desculpa moça, desculpa mesmo, mas eu nem perguntei seu nome.
Ela riu.
- É mesmo. Meu nome é Silvana. Eu tenho 40 anos e moro num bairro chamado Perdizes. Você conhece? 
- Já ouvi alguém falar nesse bairro chamado Perdizes. Dizem que é chique lá.
- É um bairro charmoso, sim.
- Perdiz é um passarinho, uma ave que nem galinha, não é?
Ela riu novamente. 
- É. É sim.
- Nossa e a senhora, você, tem 40 anos? Achei que fosse vinte e pouco...
- Uau! Adorei você! E você tem uns trinta anos?
- Vou fazer 21.
- Ai, desculpa. Mais uma gafe. 
- Não se preocupe. Eu estou com cara de velha mesmo. Eu sei.
Seguimos em silêncio. Eu me sentia num sonho. E estava mesmo. Só que acordada. De repente me deu um acesso de riso, como a muito tempo eu não tinha.
- Um lugar com nome de passarinho. Perdizes. Um bairro elegante e bonito. Foi lá que eu fui morar.
Apesar de estar feliz, confesso que quando o carro entrou na garagem da casa eu senti um aperto no coração, uma preocupação. Fiquei com vergonha e com medo daquela nova experiência tão repentina quanto minha vida pra São Paulo, o roubo da minha mala e minha vida nas ruas. Realmente minha vida andava muito diferente e agitada. Eu que sempre pensei que teria aquela vidinha na minha casa no interior com minha família para sempre me vejo de repente numa tempestade de mudanças. E isso me deixava completamente tonta.
- Você tem certeza que quer fazer isso?
- Absoluta. Quando você me contou sua história eu senti uma sinceridade e me deu vontade de tentar te ajudar. 
- Nem sei o que dizer...
- Fique tranquila.
Descemos do carro e o marido dela veio nos receber ali mesmo. Na garagem.
Ele chegou falando naturalmente e mudou quando me viu.
- O Felipe já está dormindo...
Silvana percebeu o estranhamento dele.
- Paulo, essa é a Lorena e ela precisa tomar um banho urgente. E enquanto isso eu te explico tudo. Vamos Lorena.
Eu apenas balancei a cabeça envergonhada, não consegui nem falar.
E ele ficou tão confuso que não disse nada. A generosa mulher me levou até um banheiro próximo à lavanderia.
- Querida, esse banheiro é pequeno, mas o chuveiro é muito bom. Eu adoro. Aí dentro tem sabonete, xampú, toalha... Tem escova de dentes nova e creme dental no armárinho. Por favor, fique a vontade. Depois te apresentarei o seu novo quarto. Ah e pode colocar aquele roupão estampado que está pendurado ali. Está limpinho. Depois te trago umas roupitchas.
Eu comecei a chorar. Quase caí de joelhos diante dela. E ela me deu o abraço mais carinhoso que já recebi em toda a minha vida.
O marido dela apenas nos olhava. Nem imagino o que se passava pela cabeça dele. 
Entrei no banheiro desajeitada. Quando fechei a porta. Chorei o choro de vinte anos. Minhas lágrimas se misturaram com a maravilhosa água do chuveiro. Eu me senti como uma rainha. O "pequeno banheiro" era enorme para mim. Bem maior que o meu quarto lá na minha cidade e muito mais aconchegante, cheiroso. Era um banheiro de rainha. 
Após o banho eu coloquei o que ela chamou de roupão e achei engraçado. "Roupão" nunca tinha ouvido falar e muito menos visto. E também fiquei imaginando o que seria "roupitcha".

AQUILO QUE VIVI - Capítulo DOIS

AQUILO QUE VIVI 
Capítulo Dois

Ela não me ouviu. Ou não entendeu o que eu disse. 
Ela desligou o telefone. E começou a chorar e reclamar sozinha.
- Que droga! Que raiva!
Eu me aproximei e vi que era uma mulher jovem. Parecia ter uns vinte e poucos anos.
- Ô moça. Não fica triste assim não. Daqui a pouco tudo dá certo.
Ela me olhou.
- Espero mesmo. Eu estou puta da vida com essa merda desse carro.
Olhei para o carro. E deixei escapar quase sem perceber.
- É um carro lindo! Lindo demais.
Ela olhou pra mim. Parou de chorar. Eu me senti satisfeita por vê-la mais calma e resolvi me afastar. Ela quase implorou.
- Por favor, moça, fica aqui perto de mim. Eu estou morrendo de medo. Esse lugar é horrível.
- Esse lugar é lindo! A rua debaixo é feia. Aqui tem esse jardim lindo. Você não acha?
Ela olhou para umas flores que tinha num canteiro central da avenida.
- Eu nunca nem tinha visto essas flores aí. Mas devem ter muitos ladrões por aqui a essa hora...
- Nem tem muitos não. Se fosse na outra avenida, depois do farol, lá sim...
Ela me olhou. Olhou profundamente eu poderia dizer. Me olhou como há muito tempo ninguém me olhava.
- Você mora na rua?
- Moro sim.
- Foi expulsa de casa por causa de drogas? Ou você rouba? Bebe? Sei lá. A gente vê essas coisas pela televisão.
- Ah é?! A televisão mostra isso?
- Como assim? Ah, desculpe, você não vê televisão. Eu nem consigo imaginar. Viver sem televisão? Deus me livre.
- Ah moça. Você nem imagina. Tem muitas coisas que fazem mais falta que televisão. Ou um carro...
- Nossa! Me desculpe de novo. Estou nervosa e falando uma besteira atrás da outra. Você está com fome.
- Com pouca fome. Eu acabei de comer um resto de comida que alguém me deu a tarde.
- Eu tenho umas barras de cereal aqui na minha bolsa. Você gosta?
- Gosto de tudo.
Ela me entregou as barrinhas de cereal, quase pedindo desculpas novamente, pelas gafes.
Eu comi com gosto. Gostei da tal barrinha de cereal.
Ela recebeu uma ligação.
- Tudo isso ainda? Que porra! Fazer o quê, né?! Eu espero, claro. 
Ela desligou e em seguida avisou ao marido sobre a demora.
- Meia hora! Meia hora ainda. Acredita?
- Ah passa logo. Eu fico aqui com você.
- Que bom que você está aqui. Como você chama?
- Lorena.
- Nome bonito. 
- Minha mãe viu uma mulher muito bonita numa revista e alguém falou pra ela que a mulher chamava Sophia Loren. Ele gostou e sempre ter uma filha com esse nome. Quando ela conheceu meu pai e eles começaram a namorar ela soube que a minha avó, mãe do meu pai, se chama Lorena. Ela achou que era um bom sinal. Eles casaram e quando eu nasci, depois de quatro filhos homens, ela queria que eu chamasse Sophia Loren, mas meu pai não quis. Ela propôs então o nome da minha avó e ficou. Ele achando que era uma homenagem à mãe dele. E ela sabendo que era por causa da atriz.
- História bonita. Sua família deve ser ótima.
- São sim.
Eu comecei a chorar e ela me perguntou por que eu estava na rua. E então, eu pude pela primeira vez contar minha história para alguém além de um ou dois "colegas" de rua, que também tinham histórias tristes. Todo mundo tem uma história triste pra contar nas ruas.
Ao final ela estava chorando muito e eu tive que consolá-la.
- Não fica assim não, moça. Todo mundo tem sua história triste. 
- Lorena, eu tenho um quartinho no fundo da minha casa. Não é grandes coisas, mas você gostaria de morar lá?
Eu quase caí. Chorei o maior choro de toda minha vida.
- Nem sei como agradecer. Eu posso cuidar da sua casa, do seu filho. Cozinhar. Passar. Lavar. Eu cuido de tudo pra senhora.
- Pode continuar me chamando de você, por favor. Ah, até que enfim.
O mecânico chegou e pediu desculpas pela demora.
- Saí de lá faz tempo. Mas o trânsito...
- Eu entendo, moço. Agora vai logo! Quero ir embora daqui.
O rapaz arrumou o carro. E de vez em quando olhava pra mim curioso e preocupado, com medo que eu roubasse alguma ferramenta dele.
- Ela está me fazendo companhia.
A mulher disse pra ele. E ele se acalmou um pouco, mas não entendeu nada. Ele estranhou ainda mais, quando na hora de ir embora ela me chamou pra entrar no carro dele.
Ele ficou inconformado. Uma mendiga no carro da madame?
- A senhora tem certeza?... Ele perguntou num misto de incredulidade e cuidado.
- Sim, sim. Eu tenho certeza. Pode ir embora tranquilo. Ela é minha amiga.
Ele partiu perplexo. E eu fiquei perplexa.
Amiga? Aquela mulher me chamou de amiga? Tive a sensação de estar sonhando.
- Vamos logo, Lorena. Meu marido e meu filho estão me esperando e nós duas merecemos um banho.
Foi aí que voltei ao chão.
- Estou muito suja. Vou sujar seu carro.
- Vamos logo, Lorena. Deixa de frescura.
- Mas, e minhas coisas?
- Coisas? Que coisas?
Eu corri aonde dormia e peguei a única riqueza que eu tinha. Uma foto antiga que mostrava meu pai, minha mãe e dois dos meus quatro irmãos. Eu só tinha a foto, um cobertor e um casaco velho. 
- Deixa essas coisas velhas aí, mulher.
- Eu peguei só a foto.
E fui.
- Meu Deus! São quase nove horas da noite. 
E foi naquela noite. Quase nove horas que eu, Lorena Honório da Silva, entrei naquele carro e parti com aquela mulher.
Meu Deus, eu não tinha perguntado nem o nome dela. Que vergonha!

AQUILO QUE VIVI - Capítulo UM

AQUILO QUE VIVI
Capítulo Um
Foi extremamente importante pra mim aquele olhar, aquela conversa de poucos minutos, aquele estender de mãos.
Eu já estava quase acreditando que nunca mais sairia daquela situação.
Eu havia saído da minha cidade que era muito pequena e pobre e tinha a intenção de encontrar uma tia minha aqui em São Paulo. Inexperiente e ingênua eu tinha o endereço num papel de carta cor-de-rosa e todo desenhado de flores.
Eu era simples, mal vestida e insegura.
Não sonhava morar num castelo nem casar com um príncipe. Essas coisas de menina moça que leu ou ouviu contos de fadas. Eu vinha de um lugar em que não se acreditava em contos de fadas.
Assim cheguei na grande cidade. Sem nenhuma ideia de como seria minha vida.
Ao chegar naquela rodoviária imensa e cheia de gente pra lá e pra cá eu fiquei completamente deslumbrada. Coloquei minhas malas no chão e senti como se tudo se tudo girasse ao meu redor. Eu olhava toda aquela agitação e não conseguia nem pensar direito. E fiquei ali um minuto, dois minutos, sei lá... Flutuando.
Então voltei ao chão e me dei conta do pior. Cadê minha mala? 
Olhei olhei e não entendia o que estava acontecendo. Era difícil entender. Difícil compreender porque alguém pegaria uma mala tão simples, velha...
Mas roubaram e com ela foram minhas poucas roupas, documentos e o endereço da casa da minha tia Rosa.
Eu estava sozinha. E não conseguia nem mesmo pensar no que pensar... muito menos no que fazer. Depois de alguns minutos comecei a chorar. Um senhor se aproximou e me perguntou alguma coisa, mas eu estava com tanto medo de tudo, tão insegura, que saí rapidamente de perto dele. Não sei se ele queria me ajudar, se queria alguma informação ou se estava perdido também assim como eu. 
Fiquei uma hora, talvez mais, chorando ali sozinha, sentada num dos bancos daquela rodoviária agitada. Alguns me olhavam assustados. Alguns riam. Outros talvez sentissem pena... a verdade é que ninguém se aproximou pra perguntar nada. 
Depois de ficar assim um tempo, eu comecei a andar, andar... sem saber a direção nem o porquê. 
Eu apenas andava. Sozinha. Atordoada. Sem saber o que fazer.
Pensei em pedir ajuda a uns policiais, mas, acreditem que quando eu comecei a andar na direção deles eles apertaram os passos - sem me verem - e de repente pegaram suas armas nas mãos e começaram a correr atrás de um rapaz.
Foi um alvoroço. Todos começaram a correr. Tropeçavam em mim, me empurravam e eu ali. Sem me mexer. Petrificada de susto e tolice. 
Eu tinha 19 anos e nunca tinha passado uma hora ao menos longe da minha família. Era extremamente tímida. Não sabia falar direito, não sabia me comunicar... Expressar meus sentimentos era difícil, pois fui criada numa casa em que o pai gritava, a mãe batia e os filhos obedeciam. Meus cinco irmãos mais velhos, todos homens, me tratavam como uma empregada. Eu ajudava na cozinha, lavava roupas, limpava a casa e essa seria para sempre a minha vida. Ali com meus pais e meus irmãos e também quando eu casasse. 
Mas, num certo dia, eu estava ali cuidando das panelas. Cabeça baixa. Calada. Sem nenhum outro pensamento na cabeça a não ser em não deixar que o arroz queimasse enquanto eu temperava o feijão, quando minha mãe começou a falar comigo as palavras mais estranhas que eu já tinha ouvido em 16 anos da minha pacata vida de caipira.
- Lorena, minha filha. Ontem quando eu fui na casa da Pedrina eu vi um trechinho de uma novela de televisão.
Eu ouvi e não falei nada. 
- Você está me ouvindo Lorena?
- To sim, minha mãe. E a senhora gostou? Esse negócio de novela é bom igual a ouvir rádio?
- É bem melhor. A gente fica vendo aquele povo bonito da cidade. Bem arrumado. Inteligente.
- Sei.
- Eu vi uma cena de uma mulher bem casada, com um homem rico, numa casa bonita, grande, ela tinha até carro!
- Nossa, uma mulher com carro.
- Pois é. Uma mulher feliz, bem arrumada, com carro e que tinha uma filhinha linda. Toda bem arrumada com vestidinho vermelho, rosa, branco e até azul.
- Menina de vestido azul? 
- Pois é. 
A gente ficou em silêncio e só se ouvia o som das panelas no fogo e do meu pai brincando no quintal com meus irmãos. Umas brincadeiras de homem. Davam tapas uns nos outros, algo assim.
Eu percebi então algo que chamou minha atenção. Minha mãe estava chorando.
- Está mexendo com cebola ainda, mãe?
- Não, filha. Eu quero que você olhe pra mim, agora.
Eu obedeci na hora. Eu sempre obedecia a todos, principalmente pai e mãe.
- Filha, eu quero que você seja como aquela mulher da novela.
Eu ouvi e não entendi absolutamente nada.
- Quero que você seja feliz. Casada com um homem rico da cidade e tenha filhos lindos e com roupas lindas. Longe daqui.
- Mãe?...
- Isso mesmo. Essa vida aqui é minha. Não sua. Quero que você me ouça bem ouvido. E rápido antes que seu pai e seus irmãos entrem. Você vai fazer exatamente o que eu vou falar. Sem pensar. Sem retrucar. Sem perguntar nada. Você vai arrumar todas as roupas que conseguir naquela mala que seu pai deixa vazia e guardada no quartinho dos fundos. Já peguei a mala e limpei e cobri. Não quero que você viaje com a poeira dessa cidade. 
-Viajar, mãe? Eu...
- Me escute. Escute e não discuta. Me obedeça. Você vai arrumar suas coisas. Documentos. Roupas. Tudo. Vou te dar uma bolsa com um dinheirinho e aquele papel de carta com o endereço da sua tia Rosa que você escreveu logo que aprendeu a ler e escrever na escolinha da vila. De noite, depois das onze, bem no silêncio e na escuridão você vai pegar a estrada e vai seguir seguir até a rodoviária da cidade. Você deve andar com pressa. Com cuidado, mas com pressa. Em mais ou menos cinco horas você vai chegar no centro e vai pra rodoviária. Você vai pegar o primeiro ônibus e vai pra São Paulo. Vai procurar a sua tia. E nunca mais vai voltar pra cá.
- Mas, mãe. E vocês aqui?
- Nós vamos seguir a nossa sina. Mas você vai escapar.
Dessa vez eu senti uma força misturada à tristeza daquela mulher. Minha mãe. Com quarenta e poucos anos e a aparência de mais, muito mais que isso.
- Mãe, eu não sei se quero ir.
- Mais vai! E vai hoje! Sem olhar pra trás. Você trate de me obedecer. E não conte pra ninguém. Agora quieta. Eles estão entrando.
Meu pai entrou na casa com meus irmãos.
- E essa comida sai ou não sai? Estamos morrendo de fome!
Foram diretamente pra mesa e sentaram com os pratos na mão.
Eu e minha servimos a comida em silêncio.
Eu estava tão abalada que quis sair da cozinha e ir deitar, mas minha mãe quase gritou.
- Come Lorena! Come bastante. Você precisa ficar forte.
- Forte pra quê? Ela não faz nada. Vocês vivem dentro dessa casa. Queria ver é aguentar a roça que nem eu e os meninos.
- Come.
Ordenou minha mãe. Eu comi. E a cada colherada de comida eu olhava para meus irmãos magros, minha mãe envelhecida e meu pai embrutecido e pensava no que minha mãe havia dito e armado para mim.
A noite chegou e eu fiz o que minha mãe mandou. Não pude nem mesmo ir ao quarto me despedir dela. Como eu quis abraçá-la. Mas, pensei que meu pai poderia desconfiar do plano e quando não me visse no dia seguinte às cinco da manhã servindo o café descontaria nela sua decepção. Ainda assim ele a culparia para o resto da vida pela minha fuga. Isso sem dúvidas. Meu pai era um homem duro, assim como meu avô tinha sido com ele e meu bisavô com meu avô.
Eu parti no primeiro ônibus. Com dinheiro trocado e apenas uns bolinhos de aipim embrulhados num pano, que minha mãe preparara para a viagem.
E agora isso! Minhas pouquíssimas coisas roubadas e, pior, o endereço da tia Rosa, irmã mais nova de minha mãe, que fugira com um grupo de teatro mambembe que passara pela cidade há uns trezes anos passados.
Depois da correria na Rodoviária do Tietê eu sentei no chão e fiquei. Minhas roupas eram tão simples que ao me ver sentado, uma mulher elegante me deu um dinheirinho de esmola, que ela jogou ao meu lado sem dizer uma palavra. Foi de maneira fria, distante, mas me ajudou muito, pois pude comprar um lanche que estranhei demais ao comer, com um nome que eu não entendi na hora e hoje sei, HOT DOG. Também tomei um refrigerante pela terceira vez em 16 anos.
Estranhei, mas gostei, pois matou minha fome e minha sede por várias horas.
Foi observando que aprendi pedir dinheiro nas ruas. Eu tentava contar minha história, mas antes de terminar as pessoas davam uma moeda na minha mão e saiam. 
Eu pensava em falar com a polícia, contar tudo. Aí então, me lembrava da surra que eu tinha visto três policiais darem num homem que, como eu, pedia ajuda para uma senhora em frente a um restaurante.
Fiquei com medo de apanhar.
Fiz da rua minha casa. Do chão, minha cama e o meu teto era às vezes o viaduto e outras vezes o céu poluído de São Paulo, tão diferente do que eu via lá na minha humilde cidadezinha.
Era olhando para o céu que eu orava a Deus e chorava de saudade da minha família. Da minha carinhosa e triste mãe. Da indiferença dos meus irmãos e até da rispidez matuta do meu pai.
Fiquei assim, nas ruas. Sozinha. Mais calada do que nunca. Com medo. Frio. Fome e tristeza por um ano e meio.
Era uma noite de inverno.
Eu estava comendo um resto de comida que eu ganhara de alguém quando vi um carro. Parado perto do viaduto-minha-casa. Era um carro lindo. Vermelho. Como muitos que passavam por ali. Eu jamais chegaria perto se não tivesse visto e ouvido o que se passava. Uma moça estava muito nervosa ao telefone. Ela gesticulava. Reclamava. Chorava estressada por causa de um pneu que havia furado ou o carro havia quebrado...
Ela falava num com a seguradora. Tinha medo de assalto - com razão - e além do mais estava frio e ela queria chegar logo em casa, tomar um banho quente e jantar com o marido e o filho pequeno.
Era uma moça muito bonita. Bem vestida. Falante. Comunicativa. 
Eu me aproximei hipnotizada por aquela moça. 
- Olha moça, não fica assim não. Daqui a pouco eles vem. Eu disse baixinho.