quarta-feira, 4 de novembro de 2015

AQUILO QUE VIVI - Capítulo DOIS

AQUILO QUE VIVI 
Capítulo Dois

Ela não me ouviu. Ou não entendeu o que eu disse. 
Ela desligou o telefone. E começou a chorar e reclamar sozinha.
- Que droga! Que raiva!
Eu me aproximei e vi que era uma mulher jovem. Parecia ter uns vinte e poucos anos.
- Ô moça. Não fica triste assim não. Daqui a pouco tudo dá certo.
Ela me olhou.
- Espero mesmo. Eu estou puta da vida com essa merda desse carro.
Olhei para o carro. E deixei escapar quase sem perceber.
- É um carro lindo! Lindo demais.
Ela olhou pra mim. Parou de chorar. Eu me senti satisfeita por vê-la mais calma e resolvi me afastar. Ela quase implorou.
- Por favor, moça, fica aqui perto de mim. Eu estou morrendo de medo. Esse lugar é horrível.
- Esse lugar é lindo! A rua debaixo é feia. Aqui tem esse jardim lindo. Você não acha?
Ela olhou para umas flores que tinha num canteiro central da avenida.
- Eu nunca nem tinha visto essas flores aí. Mas devem ter muitos ladrões por aqui a essa hora...
- Nem tem muitos não. Se fosse na outra avenida, depois do farol, lá sim...
Ela me olhou. Olhou profundamente eu poderia dizer. Me olhou como há muito tempo ninguém me olhava.
- Você mora na rua?
- Moro sim.
- Foi expulsa de casa por causa de drogas? Ou você rouba? Bebe? Sei lá. A gente vê essas coisas pela televisão.
- Ah é?! A televisão mostra isso?
- Como assim? Ah, desculpe, você não vê televisão. Eu nem consigo imaginar. Viver sem televisão? Deus me livre.
- Ah moça. Você nem imagina. Tem muitas coisas que fazem mais falta que televisão. Ou um carro...
- Nossa! Me desculpe de novo. Estou nervosa e falando uma besteira atrás da outra. Você está com fome.
- Com pouca fome. Eu acabei de comer um resto de comida que alguém me deu a tarde.
- Eu tenho umas barras de cereal aqui na minha bolsa. Você gosta?
- Gosto de tudo.
Ela me entregou as barrinhas de cereal, quase pedindo desculpas novamente, pelas gafes.
Eu comi com gosto. Gostei da tal barrinha de cereal.
Ela recebeu uma ligação.
- Tudo isso ainda? Que porra! Fazer o quê, né?! Eu espero, claro. 
Ela desligou e em seguida avisou ao marido sobre a demora.
- Meia hora! Meia hora ainda. Acredita?
- Ah passa logo. Eu fico aqui com você.
- Que bom que você está aqui. Como você chama?
- Lorena.
- Nome bonito. 
- Minha mãe viu uma mulher muito bonita numa revista e alguém falou pra ela que a mulher chamava Sophia Loren. Ele gostou e sempre ter uma filha com esse nome. Quando ela conheceu meu pai e eles começaram a namorar ela soube que a minha avó, mãe do meu pai, se chama Lorena. Ela achou que era um bom sinal. Eles casaram e quando eu nasci, depois de quatro filhos homens, ela queria que eu chamasse Sophia Loren, mas meu pai não quis. Ela propôs então o nome da minha avó e ficou. Ele achando que era uma homenagem à mãe dele. E ela sabendo que era por causa da atriz.
- História bonita. Sua família deve ser ótima.
- São sim.
Eu comecei a chorar e ela me perguntou por que eu estava na rua. E então, eu pude pela primeira vez contar minha história para alguém além de um ou dois "colegas" de rua, que também tinham histórias tristes. Todo mundo tem uma história triste pra contar nas ruas.
Ao final ela estava chorando muito e eu tive que consolá-la.
- Não fica assim não, moça. Todo mundo tem sua história triste. 
- Lorena, eu tenho um quartinho no fundo da minha casa. Não é grandes coisas, mas você gostaria de morar lá?
Eu quase caí. Chorei o maior choro de toda minha vida.
- Nem sei como agradecer. Eu posso cuidar da sua casa, do seu filho. Cozinhar. Passar. Lavar. Eu cuido de tudo pra senhora.
- Pode continuar me chamando de você, por favor. Ah, até que enfim.
O mecânico chegou e pediu desculpas pela demora.
- Saí de lá faz tempo. Mas o trânsito...
- Eu entendo, moço. Agora vai logo! Quero ir embora daqui.
O rapaz arrumou o carro. E de vez em quando olhava pra mim curioso e preocupado, com medo que eu roubasse alguma ferramenta dele.
- Ela está me fazendo companhia.
A mulher disse pra ele. E ele se acalmou um pouco, mas não entendeu nada. Ele estranhou ainda mais, quando na hora de ir embora ela me chamou pra entrar no carro dele.
Ele ficou inconformado. Uma mendiga no carro da madame?
- A senhora tem certeza?... Ele perguntou num misto de incredulidade e cuidado.
- Sim, sim. Eu tenho certeza. Pode ir embora tranquilo. Ela é minha amiga.
Ele partiu perplexo. E eu fiquei perplexa.
Amiga? Aquela mulher me chamou de amiga? Tive a sensação de estar sonhando.
- Vamos logo, Lorena. Meu marido e meu filho estão me esperando e nós duas merecemos um banho.
Foi aí que voltei ao chão.
- Estou muito suja. Vou sujar seu carro.
- Vamos logo, Lorena. Deixa de frescura.
- Mas, e minhas coisas?
- Coisas? Que coisas?
Eu corri aonde dormia e peguei a única riqueza que eu tinha. Uma foto antiga que mostrava meu pai, minha mãe e dois dos meus quatro irmãos. Eu só tinha a foto, um cobertor e um casaco velho. 
- Deixa essas coisas velhas aí, mulher.
- Eu peguei só a foto.
E fui.
- Meu Deus! São quase nove horas da noite. 
E foi naquela noite. Quase nove horas que eu, Lorena Honório da Silva, entrei naquele carro e parti com aquela mulher.
Meu Deus, eu não tinha perguntado nem o nome dela. Que vergonha!

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