quarta-feira, 4 de novembro de 2015

AQUILO QUE VIVI - Capítulo UM

AQUILO QUE VIVI
Capítulo Um
Foi extremamente importante pra mim aquele olhar, aquela conversa de poucos minutos, aquele estender de mãos.
Eu já estava quase acreditando que nunca mais sairia daquela situação.
Eu havia saído da minha cidade que era muito pequena e pobre e tinha a intenção de encontrar uma tia minha aqui em São Paulo. Inexperiente e ingênua eu tinha o endereço num papel de carta cor-de-rosa e todo desenhado de flores.
Eu era simples, mal vestida e insegura.
Não sonhava morar num castelo nem casar com um príncipe. Essas coisas de menina moça que leu ou ouviu contos de fadas. Eu vinha de um lugar em que não se acreditava em contos de fadas.
Assim cheguei na grande cidade. Sem nenhuma ideia de como seria minha vida.
Ao chegar naquela rodoviária imensa e cheia de gente pra lá e pra cá eu fiquei completamente deslumbrada. Coloquei minhas malas no chão e senti como se tudo se tudo girasse ao meu redor. Eu olhava toda aquela agitação e não conseguia nem pensar direito. E fiquei ali um minuto, dois minutos, sei lá... Flutuando.
Então voltei ao chão e me dei conta do pior. Cadê minha mala? 
Olhei olhei e não entendia o que estava acontecendo. Era difícil entender. Difícil compreender porque alguém pegaria uma mala tão simples, velha...
Mas roubaram e com ela foram minhas poucas roupas, documentos e o endereço da casa da minha tia Rosa.
Eu estava sozinha. E não conseguia nem mesmo pensar no que pensar... muito menos no que fazer. Depois de alguns minutos comecei a chorar. Um senhor se aproximou e me perguntou alguma coisa, mas eu estava com tanto medo de tudo, tão insegura, que saí rapidamente de perto dele. Não sei se ele queria me ajudar, se queria alguma informação ou se estava perdido também assim como eu. 
Fiquei uma hora, talvez mais, chorando ali sozinha, sentada num dos bancos daquela rodoviária agitada. Alguns me olhavam assustados. Alguns riam. Outros talvez sentissem pena... a verdade é que ninguém se aproximou pra perguntar nada. 
Depois de ficar assim um tempo, eu comecei a andar, andar... sem saber a direção nem o porquê. 
Eu apenas andava. Sozinha. Atordoada. Sem saber o que fazer.
Pensei em pedir ajuda a uns policiais, mas, acreditem que quando eu comecei a andar na direção deles eles apertaram os passos - sem me verem - e de repente pegaram suas armas nas mãos e começaram a correr atrás de um rapaz.
Foi um alvoroço. Todos começaram a correr. Tropeçavam em mim, me empurravam e eu ali. Sem me mexer. Petrificada de susto e tolice. 
Eu tinha 19 anos e nunca tinha passado uma hora ao menos longe da minha família. Era extremamente tímida. Não sabia falar direito, não sabia me comunicar... Expressar meus sentimentos era difícil, pois fui criada numa casa em que o pai gritava, a mãe batia e os filhos obedeciam. Meus cinco irmãos mais velhos, todos homens, me tratavam como uma empregada. Eu ajudava na cozinha, lavava roupas, limpava a casa e essa seria para sempre a minha vida. Ali com meus pais e meus irmãos e também quando eu casasse. 
Mas, num certo dia, eu estava ali cuidando das panelas. Cabeça baixa. Calada. Sem nenhum outro pensamento na cabeça a não ser em não deixar que o arroz queimasse enquanto eu temperava o feijão, quando minha mãe começou a falar comigo as palavras mais estranhas que eu já tinha ouvido em 16 anos da minha pacata vida de caipira.
- Lorena, minha filha. Ontem quando eu fui na casa da Pedrina eu vi um trechinho de uma novela de televisão.
Eu ouvi e não falei nada. 
- Você está me ouvindo Lorena?
- To sim, minha mãe. E a senhora gostou? Esse negócio de novela é bom igual a ouvir rádio?
- É bem melhor. A gente fica vendo aquele povo bonito da cidade. Bem arrumado. Inteligente.
- Sei.
- Eu vi uma cena de uma mulher bem casada, com um homem rico, numa casa bonita, grande, ela tinha até carro!
- Nossa, uma mulher com carro.
- Pois é. Uma mulher feliz, bem arrumada, com carro e que tinha uma filhinha linda. Toda bem arrumada com vestidinho vermelho, rosa, branco e até azul.
- Menina de vestido azul? 
- Pois é. 
A gente ficou em silêncio e só se ouvia o som das panelas no fogo e do meu pai brincando no quintal com meus irmãos. Umas brincadeiras de homem. Davam tapas uns nos outros, algo assim.
Eu percebi então algo que chamou minha atenção. Minha mãe estava chorando.
- Está mexendo com cebola ainda, mãe?
- Não, filha. Eu quero que você olhe pra mim, agora.
Eu obedeci na hora. Eu sempre obedecia a todos, principalmente pai e mãe.
- Filha, eu quero que você seja como aquela mulher da novela.
Eu ouvi e não entendi absolutamente nada.
- Quero que você seja feliz. Casada com um homem rico da cidade e tenha filhos lindos e com roupas lindas. Longe daqui.
- Mãe?...
- Isso mesmo. Essa vida aqui é minha. Não sua. Quero que você me ouça bem ouvido. E rápido antes que seu pai e seus irmãos entrem. Você vai fazer exatamente o que eu vou falar. Sem pensar. Sem retrucar. Sem perguntar nada. Você vai arrumar todas as roupas que conseguir naquela mala que seu pai deixa vazia e guardada no quartinho dos fundos. Já peguei a mala e limpei e cobri. Não quero que você viaje com a poeira dessa cidade. 
-Viajar, mãe? Eu...
- Me escute. Escute e não discuta. Me obedeça. Você vai arrumar suas coisas. Documentos. Roupas. Tudo. Vou te dar uma bolsa com um dinheirinho e aquele papel de carta com o endereço da sua tia Rosa que você escreveu logo que aprendeu a ler e escrever na escolinha da vila. De noite, depois das onze, bem no silêncio e na escuridão você vai pegar a estrada e vai seguir seguir até a rodoviária da cidade. Você deve andar com pressa. Com cuidado, mas com pressa. Em mais ou menos cinco horas você vai chegar no centro e vai pra rodoviária. Você vai pegar o primeiro ônibus e vai pra São Paulo. Vai procurar a sua tia. E nunca mais vai voltar pra cá.
- Mas, mãe. E vocês aqui?
- Nós vamos seguir a nossa sina. Mas você vai escapar.
Dessa vez eu senti uma força misturada à tristeza daquela mulher. Minha mãe. Com quarenta e poucos anos e a aparência de mais, muito mais que isso.
- Mãe, eu não sei se quero ir.
- Mais vai! E vai hoje! Sem olhar pra trás. Você trate de me obedecer. E não conte pra ninguém. Agora quieta. Eles estão entrando.
Meu pai entrou na casa com meus irmãos.
- E essa comida sai ou não sai? Estamos morrendo de fome!
Foram diretamente pra mesa e sentaram com os pratos na mão.
Eu e minha servimos a comida em silêncio.
Eu estava tão abalada que quis sair da cozinha e ir deitar, mas minha mãe quase gritou.
- Come Lorena! Come bastante. Você precisa ficar forte.
- Forte pra quê? Ela não faz nada. Vocês vivem dentro dessa casa. Queria ver é aguentar a roça que nem eu e os meninos.
- Come.
Ordenou minha mãe. Eu comi. E a cada colherada de comida eu olhava para meus irmãos magros, minha mãe envelhecida e meu pai embrutecido e pensava no que minha mãe havia dito e armado para mim.
A noite chegou e eu fiz o que minha mãe mandou. Não pude nem mesmo ir ao quarto me despedir dela. Como eu quis abraçá-la. Mas, pensei que meu pai poderia desconfiar do plano e quando não me visse no dia seguinte às cinco da manhã servindo o café descontaria nela sua decepção. Ainda assim ele a culparia para o resto da vida pela minha fuga. Isso sem dúvidas. Meu pai era um homem duro, assim como meu avô tinha sido com ele e meu bisavô com meu avô.
Eu parti no primeiro ônibus. Com dinheiro trocado e apenas uns bolinhos de aipim embrulhados num pano, que minha mãe preparara para a viagem.
E agora isso! Minhas pouquíssimas coisas roubadas e, pior, o endereço da tia Rosa, irmã mais nova de minha mãe, que fugira com um grupo de teatro mambembe que passara pela cidade há uns trezes anos passados.
Depois da correria na Rodoviária do Tietê eu sentei no chão e fiquei. Minhas roupas eram tão simples que ao me ver sentado, uma mulher elegante me deu um dinheirinho de esmola, que ela jogou ao meu lado sem dizer uma palavra. Foi de maneira fria, distante, mas me ajudou muito, pois pude comprar um lanche que estranhei demais ao comer, com um nome que eu não entendi na hora e hoje sei, HOT DOG. Também tomei um refrigerante pela terceira vez em 16 anos.
Estranhei, mas gostei, pois matou minha fome e minha sede por várias horas.
Foi observando que aprendi pedir dinheiro nas ruas. Eu tentava contar minha história, mas antes de terminar as pessoas davam uma moeda na minha mão e saiam. 
Eu pensava em falar com a polícia, contar tudo. Aí então, me lembrava da surra que eu tinha visto três policiais darem num homem que, como eu, pedia ajuda para uma senhora em frente a um restaurante.
Fiquei com medo de apanhar.
Fiz da rua minha casa. Do chão, minha cama e o meu teto era às vezes o viaduto e outras vezes o céu poluído de São Paulo, tão diferente do que eu via lá na minha humilde cidadezinha.
Era olhando para o céu que eu orava a Deus e chorava de saudade da minha família. Da minha carinhosa e triste mãe. Da indiferença dos meus irmãos e até da rispidez matuta do meu pai.
Fiquei assim, nas ruas. Sozinha. Mais calada do que nunca. Com medo. Frio. Fome e tristeza por um ano e meio.
Era uma noite de inverno.
Eu estava comendo um resto de comida que eu ganhara de alguém quando vi um carro. Parado perto do viaduto-minha-casa. Era um carro lindo. Vermelho. Como muitos que passavam por ali. Eu jamais chegaria perto se não tivesse visto e ouvido o que se passava. Uma moça estava muito nervosa ao telefone. Ela gesticulava. Reclamava. Chorava estressada por causa de um pneu que havia furado ou o carro havia quebrado...
Ela falava num com a seguradora. Tinha medo de assalto - com razão - e além do mais estava frio e ela queria chegar logo em casa, tomar um banho quente e jantar com o marido e o filho pequeno.
Era uma moça muito bonita. Bem vestida. Falante. Comunicativa. 
Eu me aproximei hipnotizada por aquela moça. 
- Olha moça, não fica assim não. Daqui a pouco eles vem. Eu disse baixinho.

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